Cabo Ligado Mensal: Agosto de 2022
Agosto em Relance
Estatísticas vitais
ACLED registrou 58 eventos de violência política organizada na província de Cabo Delgado em Agosto, resultando em 63 fatalidades relatadas
As fatalidades relatadas foram mais altas no distrito de Ancuabe, onde insurgentes realizaram ataques a civis e entraram em confronto com forças do Estado
Outros eventos ocorreram nos distritos de Nangade, Muidumbe, Macomia, Meluco, Mocímboa da Praia, Chiúre e Palma em Cabo Delgado
Tendências Vitais
Concentração de eventos de violência política organizada nos distritos de Muidumbe e Nangade, no norte
Concentração de fatalidades no distrito de Ancuabe, no sul
Primeiros ataques na província de Nampula desde Junho
Neste Relatório
A mineração e a insurgência no sul de Cabo Delgado
Pesquisa sobre a insurgência em Moçambique
Guerra civil, que guerra civil?
Resumo da Situação em Agosto
O aumento dos incidentes de violência política em Agosto em relação a julho foi notável. Dentro do quadro geral há algumas variações interessantes, sobre as quais a edição deste mês pode projectar alguma luz.
Em primeiro lugar, a concentração dos ataques ocorreu nos distritos de Muidumbe e Nangade, no norte da província, que sofreram cada um 16 incidentes de violência política organizada ao longo do mês. Em Muidumbe registaram-se 11 fatalidades relacionadas com estes, e apenas cinco em Nangade. Por outro lado, a maior concentração de fatalidades por distrito, 20, foi no distrito de Ancuabe, fronteira com a província de Nampula. No entanto, apenas sete incidentes são responsáveis por essas mortes, enquanto que mais da metade delas ocorreu num incidente.
Não se deve tirar conclusões difíceis a partir de dados de apenas um mês. No entanto, esse padrão de eventos e fatalidades realça algumas questões interessantes. Os distritos de Muidumbe e Nangade, pouco povoados e de difícil acesso, são refúgios seguros para os insurgentes que fogem das operações contra bases previamente estabelecidas no distrito de Macomia. A população que permanece é dispersa e muitas vezes vulnerável ao procurar alimentos em pequenos grupos. Os distritos do sul, como Ancuabe, são mais densamente povoados e, portanto, talvez mais propensos a ter um número maior de vítimas. Também têm redes de comunicações formais e informais mais densas. Estes vão desde operações de segurança privada contratadas pelo setor privado, como empresas de mineração, até comerciantes que se deslocam pelo território e compartilham notícias.
Isso tem implicações na resposta ao conflito. Aqueles com interesses comerciais no sul de Cabo Delgado dentro e fora de Moçambique e ameaçados pela insurgência podem ser tentados a ver o sul te prioridade sobre o norte. Compreender os interesses por trás disso, e permitir que pesquisadores e meios de comunicação acessem tanto de Cabo Delgado quanto possível com segurança será essencial para compreender que tipo de conflito está sendo enfrentado, e para decidir onde os recursos são gastos.
A exploração mineira e a Insurgência no Sul de Cabo Delgado
Por Peter Bofin, Cabo Ligado
Agosto viu a mineradora australiana Triton Minerals em conversações com governo de Moçambique sobre questões de segurança em torno do seu projecto de grafite em Ancuabe, bem como questões em curso relacionadas com outras licenças mineiras que possui no sul de Cabo Delgado. A empresa havia declarado força maior na sua operação em Ancuabe a 4 de Julho, após a morte de dois de seus trabalhadores no local durante a investida inicial dos insurgentes em Ancuabe, em Junho. A Triton, que opera em Moçambique através da sua subsidiária Grafex Limitada, não é a primeira empresa a declarar força maior. A declaração da TotalEnergies, mais famosa e impactante, em Abril de 2021, é considerada por alguns como tendo precipitado a intervenção militar internacional. Ambas as declarações ainda estão em vigor. Embora destaquem a centralidade da gestão dos recursos naturais, e das indústrias extrativas em particular, para o conflito, os recursos diferem em tipo, escala de investimento e gama de partes interessadas. Da mineração de rubi em pequena escala e principalmente ilegal aos projetos de gás natural liquefeito (GNL) em Afungi, no distrito de Palma, e ao projeto offshore Coral Sul, as indústrias extrativas envolvem uma série de grupos de interesse com influência no conflito, sua resolução e na sua futura reconstrução.
A crescente importância global do GNL, seja impulsionada pelo clima ou por considerações geopolíticas, é bem conhecida. O papel do grafite na descarbonização da produção de energia é menos óbvio. Moçambique tem um papel fundamental a desempenhar no desenvolvimento das cadeias de abastecimento dos EUA para baterias de iões de lítio para veículos eléctricos (EV). As reservas que estão a ser produzidas pela Syrah Resources em Balama, no sudoeste da província, são 80% de 'floco fino' , fundamental para a produção do material de ânodo ativo (AAM) usado nessas baterias. Com a produção de grafite em Moçambique e uma instalação planeada de processamento de AAM em Vidalia, Louisiana, EUA, a Syrah atraiu um empréstimo de mais de 102 milhões de dólares norte-americanos do Departamento de Energia dos EUA para expansão da planta de Vidalia para operações comerciais plenas. A Syrah terá, portanto, a única unidade de produção de AAM verticalmente integrada fora da China.
A Triton tem como alvo um segmento diferente do mercado de grafite na China. O recurso em Ancuabe é 56% de 'grande floco', um grau usado na produção de materiais retardantes de fogo e forro de forno e cadinho. Recentemente, a Triton atraiu mais de 5 milhões de dólares norte-americanos em capital privado chinês com um sócio e fechou um contrato off-take com outra empresa chinesa. A produção projetada da Triton será no máximo 6% da produção global. Mais de 68% do mundo a produção de grafite provém da China, oque lhe confere um controle significativo sobre o recurso. Ancuabe é uma oportunidade para o capital chinês controlar marginalmente a produção fora da China. A importância estratégica do 'floco fino para as prioridades políticas do governo dos EUA é consideravelmente maior.
O leque de interessados na mineração de rubi é muito maior, abrangendo garimpeiros ilegais em Montepuez, elites políticas em Maputo e compradores internacionais. No centro destes interesses está a Gemfields Group Ltd, registada offshore no Reino Unido, e que controla 75% da Montepuez Ruby Mining Limitada (MRM), que detém a concessão em Namanhumbir, distrito de Montepuez.
O Estado desenvolveu uma preferência por projetos de mineração em grande escala em vez de apoiar operações artesanais, pois permitem ao governo central capturar receitas por meio de impostos, royalties e taxas de licença, conforme argumentado pelo Centro Internacional de Crescimento. Também oferece uma oportunidade para as elites políticas se beneficiarem; 25% da MRM é detida pela Mwiriti Limitida, empresa controlada por Raimundo Pachinuapa, veterano da guerra de libertação e figura sénior da Frelimo. Outra figura de destaque, o vice-procurador-geral Taibo Mucobora controlada pela Gemfields licença, a Eastern Ruby Mining Limitada, que ainda não chegou à fase de produção.
Essa abordagem tem consequências. Em primeiro lugar, a ilegalidade da mineração de rubis pode ter contribuído para o envolvimento de alguns mineiros no apoio à insurgência, pelo menos em seus primeiros dias, como tem sido alegado localmente. Em segundo lugar, a acumulação de benefícios de recursos encontrados localmente para as elites em Maputo, juntamente com ações violentas para impedir a mineração ilegal, como ocorreu no local em 2017, provavelmente contribui para a contínua alienação do Estado e de sua autoridade.
O interesse significativo das elites na mineração de rubi pode atuar como um bloqueio ao desenvolvimento de um setor de mineração artesanal e de pequena escala, mas agora está na agenda política. João Feijo do Observatório do Meio Rural (OMR ) apelou recentemente à “atribuição de licenças aos mineiros de pequena escala" Talvez mais significativamente, depois de citar as autorizações de Namanhumbir de 2017, o veterano da Frelimo Dr. Hamo Thay recomendou também que os mineiros de pequena escala fossem reconhecidos e apoiados. Tais acções não seriam fáceis.
Fazê-lo para rubis é mais fácil dizer do que fazer. Além da licença operada pela MRM, a Gemfields controla mais sete cortiços na área. Cinco são pré-exploração e, dos restantes, apenas um está a produzir, e em níveis baixos. Rescindir todo ou parte desse território seria caro e abriria a possibilidade de renegociação dos termos existentes para a MRM.
Até agora, as operações de mineração de grafite e rubi não foram gravemente afectadas pela extensão da insurgência ao sul de Cabo Delgado. A declaração de força maior da Triton ainda está em vigor, mas o projeto ainda não está a produzir, pelo que o impacto é limitado. A produção na Syrah Resources e MRM continua, com maior segurança nas operações logísticas.
Embora as mortes no local de Ancuabe pareçam não ter sido uma tentativa deliberada de atingir o negócio pelos insurgentes, o Gabinete de Mídia do Estado Islâmico reagiu registando o que considera “empresas cruzadas” desde os primeiros ataques no sul em Junho. A edição de 23 de Junho do Al Naba observou como uma nova zona de guerra agora “ameaça a economia.” A 12 de Agosto, observou que as empresas que suspenderam as operações estavam relutantes em retomar as operações, apesar da insistência do governo.
Os ataques em Janeiro e Março de 2021 que levaram à retirada da Total Energies refletiram a insurgência em seu auge em termos de número de combatentes e capacidade de organizar grandes ataques. Na sua configuração atual de pequenos grupos móveis que operam no sul, embora com linhas de abastecimento limitadas, o risco para as operações de mineração é maior. A curto prazo, serão necessárias medidas de segurança sustentadas para impedir que se organizem e desenvolvam maior capacidade. A longo prazo, será necessária uma reconfiguração da regulação e do investimento para garantir que os recursos na província tragam algum benefício para a sua população. As decisões em torno disso das partes interessadas envolvidas na província antes da insurreição de Namanhumbir e Maputo, até Washington DC, irão moldar a resolução e reconstrução do conflito. Outras potências que chegaram desde então, como Ruanda e Tanzânia, ambas com interesses estabelecidos em minerais, também podem querer se envolver.
Investigação sobre a Insurgência em Moçambique
Por Tomás Queface, Cabo Ligado
Questões fundamentais sobre a origem, essência e dinâmica da insurgência no norte de Moçambique continuam a suscitar enorme interesse e têm sido alvo de acesos debates entre académicos, investigadores, políticos, jornalistas, e até mesmo círculos militares no país. O interesse cresce à medida que a insurgência se expande para novos lugares antes poupados pela violência e à medida que fortalece seus vínculos com redes transnacionais. A liderança e os objetivos da insurgência permanecem em grande parte desconhecidos, o que representa enormes desafios tanto para os estudiosos que buscam entender a insurgência quanto para aqueles que implementam estratégias de Prevenção/Combate ao Extremismo Violento (P/CVE).
A Insurgência em Cabo Delgado adotou uma violência extrema contra alvos militares e civis, destruição de propriedade pública e privada e deslocamento forçado. Para o Presidente Filipe Nyusi, a insurgência armada em Cabo Delgado representa uma ameaça para o país, pois põe em causa não só a estabilidade da região norte, mas também a soberania e integração territorial e regional. Nyusi ainda afirmou novamente no mês passado que o conflito no norte é impulsionado por atores externos.
Nas vésperas do quinto aniversário do início da insurgência, o ministro da Defesa Nacional Cristovão Chume reclamou que “a academia” gerou muitas informações sobre a insurgência, sem contribuir para um maior entendimento. Ainda hoje é difícil saber as motivações dos insurgentes, argumentou. Ele questionou como o grupo insurgente conseguiu se expandir para outras províncias e conseguiu estabelecer vínculos com redes transnacionais de terrorismo internacional. A rejeição de Chume da contribuição da academia para a compreensão do conflito foi feita sem reconhecer os obstáculos colocados no caminho de pesquisadores e jornalistas que buscam trabalhar em Cabo Delgado. Apesar disso, houve avanços consideráveis na compreensão dos fatores determinantes, entre eles o fracasso das políticas públicas, a ausência do Estado, a extrema pobreza, o desemprego, a vulnerabilidade juvenil aliada à porosidade das fronteiras e a repressão por parte da Forças de Defesa e Segurança do país.
Duas instituições académicas estatais procuraram analisar os fatores por detrás do conflito em Cabo Delgado. Na Conferência Científica de Defesa e Segurança, realizada no Instituto Superior de Estudos de Defesa (ISEDEF) em Agosto, militares listaram uma série de fatores, entre eles fatores internos, que tornaram a província vulnerável a ataques e redes de recrutamento insurgentes. Eles destacaram como a fraca representação do Estado, o subdesenvolvimento e a falta de conhecimento local prejudicam a relação entre as FDS e as populações locais.
Em 2021, a Universidade Rovuma, uma instituição de ensino superior sediada no distrito de Montepuez, procurou explorar as causas da violência a partir das percepções da população local. Sua pesquisa corrobora o estudo de Habibe, Forquilha e Pereira publicado em 2019 pelo Instituto de Estudos Sociais e Econômicos (IESE). Ambos os estudos estabeleceram relações entre violência armada e extremismo religioso, argumentando que o conflito é inspirado por uma ideologia fundamentalista, que, aproveitando das falhas de políticas governamentais, como pobreza, exclusão, altas taxas de desemprego e questões étnicas, conseguiu recrutar muitos jovens e expandir seus ataques por toda a província e além.
O IESE foi uma instituição pioneira no estudo da insurgência no norte de Moçambique. O estudo de 2019 realizado por investigadores do IESE e Mecanismo de Apoio à Sociedade Civil Fundação (MASC), uma organização de financiamento apoiado por doadores, representou um marco inicial nas tentativas de analisar a insurgência do ponto de vista acadêmico. O estudo sobre “Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique: O Caso de Mocímboa da Praia” destacou, entre outros aspetos, o fator religioso como determinante para o surgimento da insurgência armada. Eric Morier-Genoud, num estudo publicado em 2020, examinou a influência do jihadismo como origem e expansão da insurgência. Ele argumentou que as raízes da insurgência armada remontam a 2007 com o surgimento de uma seita radical que queria impor um regime social regido pela lei sharia, e que sua expansão foi possível através do estabelecimento de vínculos com organizações jihadistas internacionais.
Liazzat Bonate, investigadora moçambicana que muito tem contribuído para a compreensão da insurgência em Cabo Delgado, chamou a atenção para as inúmeras inconsistências nas abordagens que ligam a insurgência ao jihadismo internacional, ou mesmo ao islamismo radical, argumentando por exemplo, que as seitas religiosas fundamentalistas sempre existiram em Moçambique desde a independência. Bonate defende uma análise histórica do desenvolvimento da insurgência na perspectiva que permite olhar o fenômeno de forma multifacetada, incluindo os fatores socioeconômicos que caracterizaram a insurgência como forma de resistência à autoridade estatal. Sérgio Chichava, do IESE, também examinou os fatores sócio-políticos por detrás da insurgência, particularmente através do perfil da liderança, e o impacto da insurgência nos processos democráticos.
A OMR iniciou a sua pesquisa em torno da insurgência em Cabo Delgado em 2019 com uma análise contextual da situação socioeconómica na província de Cabo Delgado, argumentando que o desencadeamento da insurgência era algo esperado dado o crescimento do descontentamento, assimetrias e tensões sociais impulsionadas pela chegada dos megaprojetos. Outras análises se concentraram nas consequências socioeconômicas do conflito, na situação dos deslocados e também na dinâmica da insurgência, com foco no perfil dos insurgentes.
A análise da insurgência em Moçambique procurou inicialmente compreender a dinâmica socioeconómica da província de Cabo Delgado e desenvolver um quadro que informe o perfil e as motivações dos insurgentes. Uma agenda de pesquisa futura deve incluir o impacto do envolvimento estrangeiro no conflito e as ligações entre a insurgência moçambicana e o Estado Islâmico. Aspectos da relação entre Ruanda e Moçambique em termos de cooperação política e investimento também podem valer a pena examinar. Por fim, deve-se considerar o impacto do conflito nas relações etnoculturais e sociais. Cada uma dessas questões terá um impacto em possíveis reformas do Estado pós-conflito. A prossecução de tal agenda exigirá que o governo permita o acesso dos investigadores à província e exerça as suas actividades com liberdade e autonomia.
Guerra Civil, Que Guerra Civil?
Frelimo pode querer negá-lo, mas Moçambique está de novo em guerra civil
Por Tom Bowker, Zitamar News
“Definir quando a violência é uma 'guerra' pode ser politicamente muito sensível”, escreveu Joseph Hanlon no seu livro de 2006, Guerra Civil, Paz Civil. “Os governos que enfrentam insurgências tendem a descartar a violência como sendo meramente causada por criminosos ou 'bandidos armados' ou 'terroristas sem mente, e certamente não uma guerra.”
Dezesseis anos depois, e 30 anos desde o fim da última guerra civil de Moçambique, essas sensibilidades estão a vir à tona em Moçambique – inclusive manifestando-se através de ataques ao próprio Hanlon pelos meios de comunicação social controlados pela Frelimo, o partido no poder de Moçambique, devido insistência à de Hanlon de que Moçambique está agora, novamente, numa guerra civil.
“De que guerra civil está a falar?” perguntou uma edição recente do jornal Público, ao lado de uma ilustração grosseira de Hanlon, que escreve regularmente um boletim informativo sobre Moçambique, a receber um golpe na cabeça. “Terrorismo para si é guerra civil?” , pergunta o colunista, antes de concluir com uma ameaça violenta: “Vou aqui lhe sovar muito bem, e não atreva a tentar lutar, porque vou-lhe apertar o pescoço.”
Uma, duas ou três guerras civis moçambicanas?
O debate, tal como está, sobre se o conflito em Cabo Delgado (e agora Nampula) é uma guerra civil tem muitos ecos da discussão sobre como classificar a guerra com a Renamo, de 1976 a 1992.
Na introdução ao seu volume editado em 2018 The War Within: New Perspectives on the Civil War in Mozambique, 1976-1992, Eric Morier-Genoud, Michel Cahen e Domingos Manuel do Rosário escrevem que “Em Moçambique, o governo ainda se recusa hoje a usar este termo [guerra civil] e prefere falar de uma 'guerra de desestabilização' (o termo usado durante o conflito) ou da 'guerra dos dezesseis anos' (um termo mais neutro cunhado após o término do conflito)”.
O seu livro faz parte de “um corpo crescente de literatura académica revisionista que enfatiza a agência moçambicana na guerra civil”, segundo outro historiador dessa guerra, Alex Vines.
Tanto Vines quanto Morier-Genoud descrevem a guerra com a Renamo como a guerra civil em Moçambique – sugerindo que não houve uma antes ou depois (embora se deva lembrar que o livro de Morier Genoud et al saiu em 2018, durante o primeiro ano do conflito de Cabo Delgado). Para Hanlon, no entanto, o conflito em Cabo Delgado é a terceira guerra civil de Moçambique, depois da guerra com a Renamo, e a guerra de libertação da administração colonial portuguesa antes dessa.
Todos os três desses conflitos atendem à definição usado pelo acadêmico Stathis Kalyvas, que define a guerra civil como “combate armado que ocorre dentro dos limites de uma entidade soberana reconhecida entre partes sujeitas a uma autoridade comum no início das hostilidades.”
E enquanto Morier-Genoud et al. não definem a guerra de libertação como uma guerra civil, no caso da guerra com a Renamo escrevem que “não há dúvida de que a guerra opôs desde o início e na sua esmagadora maioria membros da mesma comunidade nacional – moçambicanos contra moçambicanos.”
O mesmo vale para a atual guerra em Cabo Delgado. “Apesar da presença de estrangeiros, a esmagadora maioria dos membros do grupo são moçambicanos”, afirmou o principal investigador moçambicano João Feijo num relatório histórico sobre a identidade dos insurgentes em Agosto de 2021.
A Perspectiva da Frelimo
O semanário Público não é muito lido nem particularmente influente. Mas é propriedade da holding Frelimo, SPI-Gestão e Investimentos, e é um instrumento de propaganda do partido no poder. Assim, pode ser considerado como uma janela para o pensamento de parte, pelo menos, da elite governante moçambicana – e a narrativa que gostaria de impor aos acontecimentos no país.
No ataque a Hanlon em Agosto, o Público condena a sua descrição do conflito em Cabo Delgado como uma guerra civil, “contradizendo o que se sabe, que é terrorismo.” Aliás, Público , “o país já sofreu uma guerra civil da qual se libertou há 30 anos” – claramente feliz agora por descrever a 'guerra de desestabilização' como uma guerra civil. Mas o que está a acontecer em Cabo Delgado, Público , é por contraste “uma onda de ameaças à soberania nacional e integridade territorial [de Moçambique], protagonizada por um grupo de terroristas de descendência islâmica, com motivos desconhecidos”.
Mas o que se passa em Cabo Delgado tem fortes ecos da situação que o Público agora chama de guerra civil, mas cuja realidade também foi oficialmente negada durante décadas.
Aqueles que negam que a guerra com a Renamo tenha sido uma guerra civil apontam para a inegável influência de fora de Moçambique tanto no início como no aprofundamento do conflito – influência que por si só é muito contestada. Hanlon insiste que é melhor entendido como uma guerra por procuração da Guerra Fria entre os EUA e o bloco socialista; Morier-Genoud et ai. dizem que "está claro que não foi a principal razão por trás do conflito".
Havia outra dimensão internacional na guerra com a Renamo – a dos vizinhos do apartheid de Moçambique,Rodésia e África do Sul, que por sua vez fundaram e continuaram a fornecer apoio material à Renamo. Mas, Morier-Genoud et al. cautela, “esta dimensão regional não deve obscurecer a dinâmica fundamental e a historicidade do conflito em Moçambique que teve a ver tanto, se não mais, com o processo de marginalização de certas regiões, áreas e populações” em Moçambique. “A guerra civil”, eles escrevem, “criou raízes rapidamente e se desenvolveu com sucesso porque certas pessoas e certas áreas foram marginalizadas e sentiram que a próxima guerra poderia ajudá-los a corrigir suas queixas e status”.
Aqui os ecos dos debates atuais sobre a natureza da guerra em Cabo Delgado são inegáveis. Além disso, o reconhecimento oficial das causas internas da guerra atual está a aumentar – embora o governo ainda prefira falar de terrorismo importado de fora do país, principalmente nos pronunciamentos presidenciais sobre a guerra.
Numa recente conferência na universidade militar de Moçambique em Maputo, no entanto, houve um reconhecimento da importância de fatores internos na causa do conflito, incluindo um estado fraco, serviços públicos precários e investimentos mal administrados, nota o relatório semanal da Cabo Ligado em 14 de setembro de 2022.
Os ecos continuam em como a guerra está sendo conduzida. Como Vines observa na sua revisão da literatura recente sobre a guerra com a Renamo, “há muitas continuidades da guerra civil” em Cabo Delgado de hoje, “como forças governamentais fracas de defesa e segurança que precisam de apoio de milícias e ajuda de militares estrangeiros, mas também aumentou a pressão por um governo melhor e mais responsável, que fornece bens públicos, como saúde e educação, e aumentou o pluralismo político”.
Não é nenhum mistério porque a Frelimo resistiria a caracterizar qualquer uma das três guerras de Moçambique como guerras civis. A guerra de libertação opôs a Frelimo, representando os moçambicanos, ao colonizador português; a segunda guerra colocou a Frelimo, representando Moçambique, contra 'bandidos' armados por estados vizinhos hostis. A atual guerra tem o governo da Frelimo defendendo Moçambique de ' islâmicosterroristas vindos de outros lugares da África Oriental e afiliados ao Estado Islâmico, enraizado no Iraque. Desafios a essas narrativas desafiam a mitologia da Frelimo como legítima representante e defensora do povo moçambicano.
Mas a realidade é que os insurgentes em Cabo Delgado, como a Renamo antes deles, estavam enraizados na sociedade moçambicana. Seja ou não útil insistir no termo 'guerra civil' negar as raízes locais do conflito dificulta a capacidade do Estado moçambicano de enfrentá-lo – tanto militarmente, como em termos de corações e mentes.
Trinta anos após a assinatura do Acordo Geral de Paz que pôs fim àguerra de 16 anos com a Renamo, a desmobilização, desarmamento e reintegração do grupo rebelde está finalmente quase completa. Mas a democracia continua a ser um sonho distante para os moçambicanos. Apesar da vitrine das eleições populares e das estruturas de poder descentralizadas, muitos, se não a maioria dos moçambicanos estão satisfeitos com a forma como a democracia funciona – particularmente no extremo oposto da capital. E uma lição chave que podem tirar do resultado da última guerra civil de Moçambique é que para fazerem ouvir as suas vozes, têm de pegar em armas.