Cabo Ligado

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Cabo Ligado Mensal: Junho de 2023

Junho em Relance

Estatísticas vitais

  • ACLED registou nove eventos de violência política na província de Cabo Delgado em Junho, resultando em pelo menos 18 fatalidades

  • Em Junho, registou-se apenas um combate entre insurgentes e as forças do Estado, no distrito de Macomia, que resultou em várias fatalidades reportadas

  • Os eventos de violência política concentraram-se em Macomia e Mocímboa da Praia. Três incidentes envolvendo civis envolvendo forças do Estado foram registrados no distrito de Mocímboa da Praia, resultando em duas fatalidades relatadas

Tendências Vitais

  • Os níveis de violência política continuam baixos

  • Características da violência contra civis por parte de actores estatais

  • SAMIM e forças do Estado intensificam patrulhas no litoral de Macomia

Neste Relatório

  • Confronto em Macomia chega ao fim

  • Postura de segurança em Mocímboa da Praia

  • Jornalistas regressam a Cabo Delgado

  • ONU nota ligações do Estado Islâmico entre Moçambique e a RDC

Resumo da Situação de Junho

O mês de Junho foi notável pela continuação de baixos níveis de violência política e pela continuação de ataques a civis pelas Forças de Defesa e Segurança (FDS). No entanto, o mês foi mais notável por um confronto no distrito de Macomia que começou a 30 de Junho e se estendeu até o dia seguinte, deixando um total de 13 militares das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) mortos.

Este é o primeiro incidente de violência política na faixa costeira do distrito de Macomia desde Março deste ano, e o primeiro confronto armado na zona entre as forças do Estado e os insurgentes este ano. Esta calma tem-se verificado apesar da presença contínua de insurgentes ao longo da faixa costeira e do aumento do patrulhamento tanto das FDS como das tropas da Missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral em Moçambique (SAMIM).

As forças estatais continuaram a alvejar civis, em actos sintomáticos de indisciplina, e não como parte de qualquer operação de contra-insurgência. No dia 9 de Junho, um professor foi morto pelas FDS na vila de Mocímboa da Praia. No dia 11 de Junho, membros das FADM, da Unidade de Intervenção Rápida (UIR) da polícia e da milícia de Naparama reuniram-se no distrito de Ancuabe para avaliar a conduta da UIR no distrito, que tem sido fonte de denúncias. Além disso, o MediaFax informou que, no dia 19 de Junho, três membros das FDS tentaram estuprar uma mulher na vila de Mocímboa da Praia.

Confronto em Macomia chega ao fim

Por Peter Bofin, Cabo Ligado

O confronto no litoral de Macomia chegou ao fim a 30 de Junho, quando uma patrulha das FADM foi emboscada quando se aproximava de uma base insurgente. Nos combates que se seguiram, cerca de 10 efectivos das FADM foram mortos. O Estado Islâmico (EI) afirmou, no seu boletim semanal al-Naba de 13 de Julho ter capturado e subsequentemente morto mais três. Nas suas declarações, o EI refere que o destacamento é constituído por militares das FADM, das Forças de Segurança do Ruanda (RSF) e da SAMIM. No entanto, o EI não apresentou evidência do envolvimento da SAMIM ou das RSF, facto que  foi confirmado por várias fontes.

Em terra, o distrito de Macomia depende principalmente de postos avançados das FADM com apoio de patrulhamento do contingente sul-africano da SAMIM baseado na sede distrital, a quase 50 quilómetros de Pangane, na costa. As Forças Locais – milícias comunais apoiadas pelo Estado – têm sido tradicionalmente fracas no distrito. Entretanto, a costa permanece desprotegida, permitindo a circulação e apoio à logística dos insurgentes desse lado. O conflito em Macomia é agora moldado por esta combinação de fraqueza das FDS, reticências da SAMIM e  das RSF, e a presença limitada das Forças Locais, aliada às raízes profundas que os insurgentes têm em Macomia.

Os dados do ACLED refletem os níveis relativos de envolvimento das várias forças. Desde o início do ano, ACLED registou 12 confrontos com os insurgentes no distrito de Macomia. Destes, 10 envolveram as FDS e apenas dois envolveram forças da SAMIM. O único incidente envolvendo as Forças Locais registrado pela ACLED em 2023 é das Forças Locais que detonaram uma armadilha em Fevereiro, provavelmente montada pelas FADM. Compreender a força relativa e os padrões de comportamento dos actores desse conflito dará uma ideia dos riscos a serem enfrentados na província nos próximos meses.

A escolha dos insurgentes da costa de Macomia como reduto ocorreu na sequência de operações intensificadas por ambas as forças estatais e forças de intervenção, particularmente da SAMIM, desde Setembro de 2022. Estas incluíram a Operação Kichwa Chake, prosseguida levada a cabo pela SAMIM em Nangade, particularmente no último trimestre de 2022, e a Operação Vulcão IV, liderada pelas FADM e lançada oficialmente em Janeiro de 2023. Estas operações levaram os insurgentes a deslocar o seu centro de gravidade para Macomia, e em particular para a faixa costeira entre as aldeias de Pangane e Quiterajo.

A mudança para o litoral também reflete as raízes que a insurgência tem nas comunidades locais. Os antecedentes de dois dos líderes da insurgência na área, Muamudo Saha e Mussa Daniel, dão algumas pistas desse facto. O passado de Saha foi documentado por Sérgio Chichava, do Instituto de Estudos Económicos e Sociais de Maputo. Filho de um líder religioso da aldeia de Rueia, em Mucojo, foi atraído pelos ensinamentos mais fundamentalistas da autodenominada seita Ahlu Sunna Wal Jamaa (ASWJ). Respeitado na região como líder religioso, tornou-se ativista social e religioso. Em 2015, chamou a atenção nacional, por ter apelado à proibição do álcool em sua comunidade. Após a sua segunda detenção relacionada com a pregação radical em 2017, pensa-se que se mudou para Mocímboa da Praia e pegou em armas.

A história de Mussa Daniel é semelhante, segundo fontes em Macomia. Ele é natural de Ilala, também conhecido como Cobre, e palco dos assassinatos de tropas das FADM a 30 de Junho. Como Saha, a sua radicalização ocorreu em mesquitas e com indivíduos da rede ASWJ. Diz-se que ele foi radicalizado numa mesquita nas proximidades de Cogolo – também não muito longe da atual base insurgente na Namurússia. Como Saha, acredita-se que tenha se juntado à insurgência cedo e teria se envolvido  num ataque a Ilala em Setembro de 2018. Fontes dizem que ele tem sido proeminente nos recentes confrontos dos insurgentes em aldeias da região, atuando como um “guia e conselheiro”.

Pode-se esperar que esta presença contínua na área, construída com conhecimento e redes locais, possa desencadear uma resposta significativa das forças amigas das RSF e da SAMIM, bem como das forças do Estado moçambicano. Mas para além do recente patrulhamento 'atmosférico' da SAMIM, e do patrulhamento mais agressivo das FADM, este não tem sido o caso.

As FADM estiveram anteriormente envolvidas em operações intensivas na faixa costeira entre Quiterajo e Pangane no início de Junho de 2021, pouco antes da intervenção internacional. As tropas das RSF também não são estranhas à área, mesmo que Macomia esteja fora de sua Área de Responsabilidade. As suas forças patrulharam aldeias entre Quiterajo e Pangane por um tempo em Abril de 2022. Isso seguiu-se a operações para limpar uma base insurgente na floresta de Catupa mais para o interior.

No entanto, as evidências de fontes locais indicam que o movimento de e para a costa continua relativamente desimpedido. As rotas que atravessam o  norte do distrito de Macomia e para o distrito sul de Mocímboa da Praia mantêm uma ligação com as forças insurgentes em Muidumbe e ameaçam a estrada costeira entre Macomia e Mocímboa da Praia. Essas ligações, bem como a liberdade de movimento ao longo da costa, significam que os insurgentes reunidos nas aldeias costeiras não estão isolados.

Entende-se que o governo de Moçambique prefere que SAMIM permaneça na província de Cabo Delgado por não mais de um ano, e que antes de qualquer retirada começar, deve fazer mais uma investida contra os insurgentes. Se isso acontecer, será em Macomia, concentrando-se nas áreas entre as aldeias de Quiterajo e Pangane. Para serem bem-sucedidas, as operações precisarão fechar as rotas terrestres e marítimas usadas pelos insurgentes para chegarem e saírem da costa.

Postura de segurança em Mocímboa da Praia

Por Armando Nhantumbo, MediaFax

Quem conheceu Mocímboa da Praia antes de 5 de Outubro de 2017 pode facilmente constatar hoje como a insurgência levou à militarização do distrito. Num cenário que se repete noutros distritos de Cabo Delgado, vários ramos das forças de segurança patrulham agora o que já foi um santuário da insurgência.

Em Mocímboa da Praia operam cinco ramos das forças de segurança. São elas as FADM, a Polícia da República de Moçambique (PRM), a UIR, a Força de Defesa do Ruanda (RDF) e as Forças Locais. Se, antes da insurreição, só se viam, nas ruas de Mocímboa da Praia, sobretudo agentes da PRM, hoje são as forças de segurança de todos os tipos que tomam conta do distrito, particularmente da vila sede.

No início da insurgência, em Cabo Delgado, o governo moçambicano classificou os ataques como actos criminosos cometidos por bandidos. Como uma questão de segurança interna, a resposta aos ataques era da responsabilidade da PRM, incluindo a elite e paramilitar UIR. No entanto, com a intensificação dos ataques, o governo passou a classificar os eventos ocorridos em Cabo Delgado, em Abril de 2020, como uma “ agressão externa perpetrada por terroristas”, significando, teoricamente, que o assunto passou da PRM para as FADM. Até Janeiro de 2021, o comando das operações das FDS foi transferido para o General Eugénio Mussa das FADM.

A par disso, surgia uma terceira força doméstica – as Forças Locais. ACLED registou o seu primeiro envolvimento em Cabo Delgado em 2018, assumindo-se como protagonista em 2021. Com a recuperação dos distritos outrora afetados pela guerra, as Forças Locais passaram a incluir combatentes dos respectivos distritos. Mas predomínio de pessoas de origem Makonde, do interior, tem criado ressentimentos entre os Mwanis do litoral, numa província onde as diferenças étnicas são mesmo consideradas por alguns estudos como parte das explicações para o conflito em curso.

A chegada à província em Junho de 2021 das RSF, estes asseguraram rapidamente os distritos de Mocímboa da Praia e Palma. As RSF continuaram a manter uma presença dominante nestas duas Áreas de Responsabilidade.

São estas as forças que estão atualmente, cada uma do seu lado, embora algumas operações sejam realizadas em conjunto, em operações de manutenção da paz, proteção e, em algumas situações, em operações agressivas, em Mocímboa da Praia.

As RSF, compostas pela Polícia Nacional de Ruanda e pelas RDF, são os principais protagonistas. Mais bem equipados do que os seus anfitriões, eficazes e capazes de se envolver com as comunidades, eles são populares. Fontes consistentemente dizem que se sentem mais seguros com tropas ruandesas do que moçambicanas, especialmente as FADM. “Na verdade, estamos a ficar aqui, graças a eles. Quando vimos os ruandeses em patrulha, nos sentimos seguros”, comenta um comerciante local.

Estes não são dados novos. Desde a sua chegada em 2021, os ruandeses têm adotado uma abordagem de 'conquistar mentes e corações' da população, indo contra a forma hostil com que as tropas moçambicanas têm se relacionado com os civis, que inclui abusos e violações dos direitos humanos. Só em Junho houve dois homicídios cometidos pelas FDS na vila de Mocímboa da Praia. Fontes locais dizem que quando isso acontece, reclamam aos ruandeses, e não às autoridades moçambicanas.

As RSF controlam os locais mais estratégicos do distrito de Mocímboa da Praia, como a própria vila, e o Posto Administrativo de Mbau, outrora santuário dos insurgentes. Só em Mbau, onde movimentos insurgentes foram relatados recentemente, os ruandeses têm cerca de 400 soldados.

Nos pontos intermédios, encontram-se forças moçambicanas, entre as quais homens das FADM, PRM e UIR. As Forças Locais mantêm presença. A sua presença nas aldeias é mais acentuada do que nas sedes distritais, segundo fonte local.

De um modo geral, Mocímboa da Praia, em particular a sede distrital, não está sob grande pressão dos insurgentes, embora estes estejam presentes na zona sul do distrito. Uma das maiores preocupações das autoridades locais é o alegado envolvimento de jovens mototaxistas na logística dos insurgentes – Mocímboa da Praia é um dos distritos do norte de Moçambique onde as motos são o principal meio de transporte.

Com o retorno gradual da população, o setor cresceu. As autoridades locais suspeitam que mototaxistas estejam a colaborar com os insurgentes para entregar alimentos e outros suprimentos. Uma fonte local comentou que pode ser difícil acabar com esse problema, já que alguns desses jovens têm laços familiares com os insurgentes. Ele também observou que um número significativo dos jovens envolvidos no conflito em seus primórdios veio do distrito.

A curto e médio prazo, a segurança da população de Mocímboa da Praia está dependente da presença das RSF. No entanto, a longo prazo, o progresso com a reforma do sector de segurança e a segurança na província como um todo serão críticos. Para os primeiros, os atuais cortes salariais e atrasos no pagamento de salários das FADM não auguram nada de bom. Uma melhor disciplina e, portanto, melhores relações com as comunidades não serão alcançadas sem clareza sobre isso. A possível retirada da SAMIM do resto da província dentro de 12 meses irá colocar uma pressão considerável em todos os ramos das FDS, podendo ameaçar a segurança de Mocímboa da Praia.

Jornalistas regressam a Cabo Delgado

Por Tomás Queface, Cabo Ligado

Na última semana de Junho, o Ministério da Defesa Nacional de Moçambique fez um convite inusitado a um grupo de jornalistas nacionais e internacionais para uma visita de um dia a dois distritos afetados por conflitos em Cabo Delgado – Palma e Mocímboa da Praia. Foi durante a contraofensiva do governo em 2021 para retomar a vila de Palma, que caiu nas mãos dos insurgentes a 24 de Março, que um grupo significativo de jornalistas foi levado pela última vez ao teatro de operações norte. Mas, dois anos depois, o governo que tão severamente restringiu a cobertura mediática do conflito em Cabo Delgado está a reabrir as portas da província à imprensa. Qual é o significado desta acção por parte do governo? E o que se pode dizer sobre a actual cobertura mediática do conflito no norte de Moçambique?

"Ainda há guerra em Cabo Delgado?" é uma pergunta comum em Maputo e outras capitais provinciais quando o Presidente Filipe Nyusi anuncia a morte, captura ou rendição de insurgentes em confrontos com as FDS. Isto porque o conflito em Cabo Delgado continua a ser pouco noticiado na imprensa nacional. A relutância do governo em fornecer informações sobre o conflito tem sido questionada pelo académico moçambicano Elísio Macamo. Ele questiona porque é que o governo, o Ministério da Defesa Nacional em particular, não realizam conferências de imprensa regulares para informar e explicar aos moçambicanos o que se passa na província. A disponibilização dessa informação, diz Macamo, permitiria um debate mais alargado.

Outra questão que dificulta o trabalho dos jornalistas em Cabo Delgado é a falta de proteção e segurança para os jornalistas nas áreas afetadas pelo conflito. A sua segurança pessoal e individual é quase inexistente, para além do facto de não serem bem recebidos pelas autoridades. Isso inclui a falta de proteção contra abusos por parte das FDS, bem como dos insurgentes.

Além disso, as declarações do Presidente Nyusi em 2021, quando acusou os meios de comunicação social  de agirem efectivamente em nome de “inimigos ou terroristas”, ainda têm impacto na profissão jornalística. A ideia de que os jornalistas devem alinhar-se com a narrativa do governo encontra eco na noção de que os jornalistas não devem transmitir notícias que vão contra a unidade nacional. Nesse aspecto, há certa diferença entre a imprensa oficial e a imprensa privada. Enquanto a imprensa estatal, em particular a Rádio e Televisão de Moçambique, tem estado na vanguarda da agenda do governo na sua cobertura, os meios de comunicação privados não. Isso limitou a propagação da propaganda do governo.

A realização de uma viagem com mais de 40 jornalistas, muitos deles da comunicação social privada, visava essencialmente colmatar esta lacuna. O objetivo era principalmente a divulgação da narrativa e perspectiva do governo sobre o conflito. Numa visita guiada pelo Ministério da Defesa Nacional, os jornalistas chegaram primeiro à aldeia de Palma. Seguiram então para a aldeia de Mute em Palma e seguiram para a sede distrital de Mocímboa da Praia. Os jornalistas puderam testemunhar o retorno significativo da população deslocada e o renascimento da economia local. É o que o governo chama de estabilidade, que, segundo o ministro da Defesa Nacional, Cristóvão Chume, é medida pelo número de pessoas que ali vivem. Ao longo das várias paragens, Chume interagiu com pessoas que puderam confirmar o regresso à normalidade, pelo menos nas zonas mais seguras. A visita terminou com uma conferência de imprensa. Chume abordou vários assuntos relacionados com o conflito, incluindo o acordo entre o Governo de Moçambique com a TotalEnergies sobre a Joint Task Force.

Ao convidar também para Cabo Delgado os meios de comunicação social estrangeiros, o governo quis tranquilizar os investidores estrangeiros que as condições de segurança permitem a retoma dos projetos de gás natural, que estão suspensos desde que a Total declarou ' força maior' em 2021. No entanto, a situação de segurança nos dois distritos é mista. Em Palma, não há violência política desde Fevereiro. A situação é contrária em Mocímboa da Praia, onde em Junho, insurgentes foram vistos a circular livremente na zona sul do distrito, nomeadamente nas aldeias de Kalugo e Limala.

Há dúvidas se a recente abertura de Cabo Delgado à imprensa será permanente e consistente. Em primeiro lugar, a visita foi organizada pelo próprio governo, não por iniciativa dos jornalistas. Em segundo lugar, os locais por onde os jornalistas deveriam passar eram determinados pelas próprias autoridades governamentais. Outra questão é até que ponto a estratégia do governo de transmitir uma sensação de estabilidade em Cabo Delgado foi bem-sucedida.

Enquanto isso, o EI parece ter sua máquina de propaganda em pleno funcionamento. Publicou recentemente imagens de soldados moçambicanos mortos e vários equipamentos e munições apreendidos na sequência dos recentes confrontos em Macomia. Se esta contraofensiva mediática do EI não desacredita os esforços do governo para projetar estabilidade, pelo menos põe em dúvida as perspectivas do governo face ao conflito.

ONU Nota Ligações do Estado Islâmico entre Moçambique e a RDC

Por Peter Bofin, Cabo Ligado

O último relatório do Grupo de Peritos das Nações Unidas sobre a República Democrática do Congo (RDC) foi publicado a 13 de Junho de 2023. A ONU publica tais relatórios sobre a RDC desde 2004. Do ponto de vista de Moçambique, o destaque do último relatório é a apresentação de evidências sobre as conexões entre os insurgentes em Cabo Delgado e as Forças Democráticas Aliadas (ADF) na RDC através de redes afiliadas ao EI. Esta é a primeira vez que o Grupo de Peritos na RDC reconhece explicitamente esta ligação.

No que respeita às relações entre os afiliados do EI na RDC e em Moçambique, o relatório apresenta evidências da gestão das redes financeiras do EI na região, desde a Somália até a África do Sul e abrangendo Moçambique, Tanzânia e Uganda. Evidências de contatos diretos recentes entre o ADF e os líderes de Cabo Delgado complementam a documentação de relatórios anteriores da ONU de redes bem desenvolvidas pelo ADF e outros grupos armados da RDC, com a África Austral e passando pela Tanzânia, Burundi e outros lugares.

Sobre o financiamento, o relatório do Grupo de Peritos da ONU apresenta provas semelhantes, embora menos detalhadas, às apresentadas pela Fundação Bridgeway num relatório divulgado no início do mês passado e revisto no Cabo Ligado. Ambos discutem transferências da Somália para a África do Sul para posterior distribuição na África Oriental, entre 2019 e 2020. O relatório do Grupo de Especialistas, como Bridgeway, discute transferências de até 400.000 americanos do centro de Karrar do EI no norte da Somália para a África do Sul, e sua transferência posterior através de uma série de transações para o Quênia, para pagamentos a Moçambique, Tanzânia e Uganda. Tal como acontece com a Bridgeway, o foco do Grupo de Especialistas está na movimentação de dinheiro para o ADF em Uganda, para o qual consegue rastrear com sucesso US$ 60.000 até seus destinatários finais.

Os dados da Bridgeway e do Grupo de Peritos mostram que, pelo menos até 2021, Moçambique esteve ligado às redes de financiamento do EI. Essas redes sofreram alguns golpes desde então. Bilal al-Sudani, do EI, que coordenava os fluxos financeiros na Somália, foi morto pelas forças dos EUA no final de Janeiro de 2023. Já em Agosto de 2021, Abdirizak Mohamed Abdi Jimale, que se reportava a al-Sudani e gerenciava transações, de acordo com o Grupo de Especialistas relatório, foi condenado e preso na Somália.

O relatório também descreve os contatos diretos entre os dois grupos. Menciona o movimento de combatentes entre os dois teatros já em 2017-18. A novidade do relatório é o facto de  este facto ser apresentado como uma descoberta nova, embora já seja do conhecimento das autoridades da Tanzânia há alguns anos. De fato, o próprio Grupo de Especialistas apresentou evidências de redes de recrutamento do ADF que se estendem por Uganda, Burundi e Tanzânia e pela África do Sul já em 2018, redes que quase certamente antecederam a investigação da ONU. Nestas circunstâncias, seria surpreendente se algum elemento de apoio mútuo entre a RDC e os grupos moçambicanos não tivesse surgido.

Mais surpreendentemente, o relatório alega que reuniões entre os dois grupos foram realizadas na região de Kigoma, no noroeste da Tanzânia, em Agosto de 2021, e na província de Kivu do Sul, na RDC, em Junho de 2022. O relatório afirma que se realizará uma nova reunião em Kivu do Sul no início de 2023. Isso faz eco de um relatório do Centro de Jornalismo Investigativo em Moçambique no ano passado que afirmava que o líder da insurgência Bonomade Machude Omar, também conhecido como Ibn Omar, participou de uma reunião em Kivu do Sul no final de Junho ou início de Julho de 2022. O relatório da ONU não menciona a presença de Bonomade naquele ano, mas afirma que ele e Sheikh Abu Yassir Hassan de Cabo Delgado participaram da reunião de 2023.

Relatórios de tais reuniões têm circulado entre “pesquisadores e fontes diplomáticas”, conforme citado no relatório da ONU, há pelo menos um ano. Sobre a reunião de Kigoma, fontes acadêmicas, diplomáticas e da sociedade civil na Tanzânia não puderam confirmar tal reunião. No entanto, o analista Ryan O'Farrell observa que o momento da reunião de Kigoma corresponde ao de um Hytham al-Far, um cidadão jordano que chegou à RDC através da Tanzânia em 2021. A evidência de seu itinerário foi apresentada no relatório de Junho de 2022 do Grupo de Especialistas.

Vale lembrar que o mandato do Grupo de Peritos é amplo. Abrange as ações de todos os grupos armados na RDC, tanto estrangeiros quanto domésticos, sanções direcionadas e conexões entre crime organizado, grupos armados e exploração de recursos naturais. A multiplicidade de interesses em torno dessas questões pode levar à relutância em cooperar por parte dos governos, inclusive alguns da região. Este ano, como todos os anos, o Grupo de Peritos “lamenta a intempestividade e o baixo número geral de respostas aos seus pedidos oficiais de informação por parte de actores do setor privado e dos Estados-Membros e sublinha que as respostas a tais pedidos são essenciais para as suas investigações”. Desvendar questões transnacionais como a presença do EI no leste, centro e sul da África, quando o acesso à informação é determinado por interesses nacionais concorrentes, talvez reflita a situação no teatro mais íntimo de Cabo Delgado, onde muitos dos mesmos interesses estão presentes.