Cabo Ligado Semanal: 14-20 de Junho
Número total de ocorrências de violência organizada: 902
Número total de vítimas mortais de violência organizada: 2,909
Número total de mortes reportadas de alvos civis: 1,437
Resumo da Situação
Na semana passada, reinou a confusão em Cabo Delgado após uma série de incidentes violentos em que a identidade dos autores, a priori, não estava clara. No dia 15 de Junho, civis perto de Novo Cabo Delgado, distrito de Macomia, descobriram pelo menos sete (uma fonte relata oito) cadáveres, alguns dos quais haviam sido baleados e outros que pareciam ter feridas de armas brancas. Os mortos foram identificados como civis locais. Não está claro quando foram mortos ou por quem, embora a descoberta dos seus corpos tenha ocorrido pouco depois de outro incidente nas proximidades de Litamanda (detalhado abaixo), no qual os habitantes locais acreditam que soldados moçambicanos mataram civis e depois os decapitaram para culpar os insurgentes.
No dia 17 de Junho, os civis que permaneceram em Quitunda, ao sul da vila de Palma, fugiram quando ouviram tiros ao longo da madrugada. O que muitos acreditavam tratar-se de um ataque protagonizado por insurgentes acabou sendo uma invasão não anunciada das forças governamentais, aparentemente em um esforço com vista a erradicar os insurgentes no seio da população de Quitunda. Durante a operação, as tropas do governo invadiram o assentamento improvisado em Quitunda, saqueando as propriedades dos deslocados que lá vivem. Civis na área dizem que a unidade responsável está prestes a ser transferida de Palma, o que poderá reduzir largamente as chances de enfrentarem as consequências de seus saques.
De volta a Novo Cabo Delgado, um grupo de oito insurgentes atacou a aldeia no dia 19 de Junho. Eles mataram seis civis que trabalhavam nos campos das redondezas da aldeia e outro civil foi morto na aldeia quando tentava entrar em contacto com a milícia local. Eles também causaram danos nas casas e saquearam propriedades. Na sua saída da aldeia, no entanto, os insurgentes foram emboscados por uma força miliciana local. A milícia matou cinco insurgentes e feriu os outros três. Os insurgentes largaram os produtos que saquearam da aldeia, bem como seis armas de fogo que os milicianos recuperaram.
Incidentes anteriores também vieram à tona na semana passada, incluindo dois no dia 12 de junho na vila de Palma. O primeiro aconteceu na parte norte da vila, que muitos chamam de “Palma Alta”. Um grupo autoproclamado de vigilantes na zona baixa de Palma, onde o controlo do governo é maior e mais civis estão concentrados, recebeu uma informação segundo a qual havia um pequeno número de insurgentes remanescentes na zona alta de Palma e foi confrontá-los com catanas. Chegando na zona alta de Palma, o grupo interceptou seis insurgentes fortemente armados, que dispararam contra eles, matando três. Mais tarde, no mesmo dia, os insurgentes retaliaram, entrando na zona baixa de Palma e matando sete civis, incluindo duas crianças e dois adultos que estavam na área em busca de comida para Quitunda.
Do mesmo modo, no dia 12 de Junho, sete residentes de Litamanda, norte do distrito de Macomia, foram decapitados enquanto trabalhavam nos campos de produção localizados fora da aldeia. A população local inicialmente suspeitou que os insurgentes fossem os autores do acto, devido à forma terrível das mortes. Membros da milícia local, no entanto, suspeitaram imediatamente das forças governamentais. Os militares posicionados naquela área foram evasivos quando questionados sobre os assassinatos, e alguns deles tinham sangue nos uniformes. Os militares suspeitos de estarem envolvidos nos assassinatos abandonaram a área imediatamente, voltando para a vila de Macomia. Os residentes de Litamanda agora acreditam que os militares mataram os civis para saquear suas propriedades e depois os decapitaram para fazer parecer que os insurgentes eram os responsáveis.
Novas informações surgiram na semana passada sobre pedidos efectuados por insurgentes para resgate de reféns capturados durante o ataque de 24 de Março a Palma. A família de um cidadão indiano que trabalhava em Palma antes de ser raptado durante o ataque veio a público para pedir ao Primeiro Ministro Indiano, Narendra Modi, que os ajudasse a resgatar o indivíduo. A família diz que os insurgentes ligaram para o empregador do indivíduo capturado e exigiram um resgate de 1 milhão de dólares norte-americanos, que o empregador está disposto a pagar. O entrave é que as forças de segurança moçambicanas não permitirão que o empregador entregue o dinheiro dentro da área indicada pelos insurgentes, que está ao longo da fronteira entre Moçambique e Tanzânia. As forças governamentais facilitaram o pagamento de outros resgates, e a família da vítima espera que a pressão de Modi force o governo moçambicano a permitir que este também seja aprovado.
Foco do Incidente: Evolução da Situação de Palma
Os relatos que chegaram da vila de Palma ao longo da semana passada foram muitas vezes confusos, refletindo uma rápida evolução da situação. Após um longo período em que muitas pessoas deslocadas de Palma consideravam que a aldeia de reassentamento de Quitunda era o lugar mais seguro para se abrigar até que pudessem escapar completamente do distrito, parece que a frágil paz começou a deteriorar-se. No final de Maio, a maioria dos que haviam permanecido em Quitunda havia se mudado para Maganja, na praia mais distante da península de Afungi. Desde então, os que permaneceram em Quitunda e na zona baixa de Palma enfrentaram uma série de ameaças.
Duas ameaças principais são detalhadas no Resumo da Situação desta semana -- os civis no sul de Palma estão à mercê dos insurgentes e das forças governamentais. Os insurgentes parecem capazes de cometer actos violentos na zona baixa de Palma à vontade, sem nenhuma repercussão das forças governamentais. Enquanto isso, as tropas governamentais aparentemente se sentem livres para saquear propriedades de civis, especialmente se souberem que em breve deixarão a área.
Quanto mais tempo as pessoas deslocadas ficarem retidas em Palma, maior será o leque de ameaças que enfrentarão. Uma dessas ameaças é o recrutamento de insurgentes. Um grupo de deslocados que chegou a Pemba no dia 20 de Junho, depois de fugir de Palma, descreveu um encontro que os insurgentes tiveram com populares na zona baixa de Palma no dia 16 de Junho. No encontro, os insurgentes dirigiram-se aos civis, afirmando que eles são figuras mais importantes na vida dos civis do que o presidente moçambicano Filipe Nyusi, uma vez que os insurgentes podem alcançar fisicamente os civis a qualquer momento. Nas vésperas da reunião, os insurgentes sequestraram novamente três crianças na zona baixa de Palma, que haviam fugido da custódia dos insurgentes depois de serem raptadas durante o ataque de 24 de Março à vila de Palma. Os sequestros servem em parte para enfatizar o argumento dos insurgentes de que os civis em Palma deveriam, se não se juntar à insurgência de uma vez, pelo menos cumprir suas ordens, já que o governo não pode protegê-los. Como que em um esforço para enfatizar o mesmo ponto, as forças governamentais saquearam propriedades civis em Quitunda na manhã seguinte.
Essas e outras ameaças se tornarão mais graves à medida que mais pessoas vão escapando da área. No dia 16 de Junho, a Organização Internacional das Nações Unidas para as Migrações estimou que mais de 80.000 pessoas foram deslocadas de Palma, e o número continua a aumentar. Um carregamento de cerca de 100 civis deslocados chegou no dia 11 de Junho à cidade de Pemba vindo de Palma, e mais pessoas chegam diariamente. À medida que o número de civis na área de Palma diminui, aqueles que permanecerem ficarão mais vulneráveis à coerção tanto das forças governamentais bem como dos insurgentes. Sem um esforço de evacuação concertado, existe o risco de que, a certa altura, os que permaneceram em Quitunda, baixa de Palma e Maganja sejam obrigados a se juntar à insurgência como estratégia de sobrevivência.
Resposta do Governo
Aqueles que fogem de Palma continuam a ser alvo de profundas suspeitas por parte das Forças de Defesa e Segurança. Os 100 deslocados que chegaram à Pemba no dia 11 de Junho foram forçados a esperar no frio durante horas até que as forças governamentais autorizassem o desembarque das suas bagagens e certificar-se de que não havia insurgentes disfarçados entre o grupo.
Assim que os deslocados chegam a Pemba, uma das muitas ameaças que ainda enfrentam é a intimidação por parte das forças governamentais pelo facto de não possuírem documentos de identificação. De acordo com um novo relatório da Universidade Católica de Moçambique (UCM), que tem prestado assistência ao projecto do Governo “Caravana Jurídica”, iniciativa que visa a emissão de documentos de identificação de substituição para civis deslocados, a equipa da UCM teve de intervir repetidamente para impedir as Forças de Defesa e Segurança de extorquir ou prender pessoas deslocadas em Pemba e Metuge por falta de documentação. A Caravana Jurídica emitiu documentação de substituição para 7.000 deslocados e planeia chegar a 20.000 no total.
Por outro lado, até ao momento algumas ameaças diminuíram. As autoridades provinciais de saúde anunciaram na semana passada que o surto de cólera em Cabo Delgado terminou, sem relatos de hospitalizações por cólera desde Abril. O anúncio é uma boa notícia para os deslocados sob alto risco de contaminação da cólera, mas o alívio pode ser temporário. Os trabalhadores humanitários alertam que as fortes chuvas em áreas criadas para lidar com o aumento da população deslocada, cujas infraestruturas de saneamento são inadequadas, provavelmente produzirão novos surtos.
Na semana passada, as empresas locais em Cabo Delgado receberam mais más notícias, já que a petrolífera francesa Total declarou força maior no restante de seus principais contratos na província, atrasando pagamentos que já deveriam ter entrado em parte na economia local. A Total disse que espera que a declaração permaneça em vigor por pelo menos um ano.
No âmbito internacional, os Estados Unidos anunciaram uma disponibilidade de 30 milhões de dólares norte-americanos para apoiar os esforços do Programa Mundial de Alimentos (PMA) em Moçambique. O montante diminui substancialmente o déficit de financiamento projectado pelo PAM para Cabo Delgado, mas o esforço humanitário geral permanece gravemente subfinanciado. Numa entrevista antes do anúncio dos EUA, a coordenadora residente das Nações Unidas em Moçambique, Myrta Kaulard, disse que do pedido humanitário global de 254 milhões de dólares norte-americanos para 2021, só foram mobilizados 24,3 milhões de dólares norte-americanos em doações. Mesmo com os 30 milhões de dólares norte-americanos adicionados pelos EUA, o pedido constitui apenas 21% financiado na metade do ano.
Na Europa, a eurodeputada do Partido Socialista de Portugal, Isabel Santos, apelou ao diálogo entre os insurgentes e o governo moçambicano. A sua abordagem faz eco a sugestões feitas por membros da sociedade civil moçambicana e pelo próprio Presidente Nyusi. No entanto, a posição da Santos a distancia de figuras mais de direita na política portuguesa que defenderam uma abordagem mais militarizada, indicando as divisões na cena política interna de Portugal sobre como responder ao conflito de Cabo Delgado.
A Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) vai realizar amanhã, 23 de Junho, a sua Cimeira Extraordinária em Maputo, onde os Chefes de Estado e de Governo irão, de acordo com uma declaração do presidente sul-africano Cyril Ramaphosa “considerar a proposta de Resposta Regional da SADC” ao conflito de Cabo Delgado. Já decorrem, no dia de hoje, reuniões ao nível ministerial.
© 2021 Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED). All rights reserved.