Cabo Ligado Semanal: 31 de Maio-6 de Junho

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Em Números: Cabo Delgado, Outubro 2017-Junho 2021

4 Junho 2021.

  • Número total de ocorrências de violência organizada: 890

  • Número total de vítimas mortais de violência organizada: 2,868

  • Número total de mortes reportadas de alvos civis: 1,410

Acesse os dados.

Resumo da Situação

As forças de segurança moçambicanas deram mostras, na semana passada, da ameaça que representam tanto para os insurgentes quanto para os civis. No dia 1 de junho, populares no posto administrativo costeiro de Quiterajo, distrito de Macomia, relataram uma extensa troca de tiros entre as forças governamentais e insurgentes. Os combates pareciam fazer parte de uma ofensiva do governo contra posições insurgentes perto do rio Messalo, ao norte de Quiterajo. Dos confrontos, não há estimativas de baixas, mas a fumaça vindo da zona de combate foi vista em Chilongo, no posto administrativo de Mucojo.

No dia 4 de Junho, informações que sugerem tratar-se  da mesma ofensiva dão conta de que as forças governamentais eliminaram vários insurgentes perto de Pangane, na costa do distrito de Macomia, ao sul de Quiterajo. Os combates tiveram lugar na quinta do membro influente da Frelimo, Alberto Chipande, cuja propriedade também foi visada em Setembro de 2020, quando os insurgentes roubaram gado da sua quinta. Um segundo confronto ocorreu no mesmo dia, nas proximidades da mesma quinta, ao sul de Nacutuco, no qual os insurgentes também foram mortos. Não há estimativa de baixas  disponíveis de ambos confrontos.

Igualmente, no dia 4 de Junho, populares no distrito de Muidumbe relataram que uma tentativa de invasão de Namacande foi repelida por helicópteros governamentais. Não houve registo de vítimas, mas há indicações de que o governo está focado em proteger a capital distrital recentemente recuperada, pelo menos por enquanto.

Na semana passada, houve também múltiplos relatos de incidentes anteriores em Cabo Delgado, muitos dos quais envolvendo as Forças de Defesa e Segurança que maltratavam civis. Ao longo do dia 22 de Maio, uma mulher que havia sido deslocada do distrito costeiro de Macomia para Ibo foi encontrada morta depois de ter sido violada sexualmente. O autor do crime é desconhecido, mas a maior parte dos civis em Ibo acredita que foi um membro das forças governamentais. Houve casos anteriores de agressões sexuais cometidas contra mulheres e meninas deslocadas pelas forças de segurança na ilha. 

Um funcionário da construtora REEF, que realiza operações humanitárias privadas ao serviço de civis na área de Palma desde o ataque de 24 de Março à vila, relatou que um militar apontou-lhe uma arma quando fazia entrega de ajuda durante a semana de 24 Maio. A situação foi resolvida pacificamente, mas o funcionário disse que os militares intimidam com frequência os trabalhadores da REEF porque a ajuda alimentar gratuita da empresa compete com vários membros das forças governamentais que vendem alimentos e outros bens a pessoas retidas no distrito de Palma.

Por volta de 25 de Maio, de acordo com uma  publicação da Carta de Moçambique, membros das forças governamentais saquearam o Standard Bank e as agências do BCI em Palma, apoderando-se de cerca de 1 milhão de dólares norte-americanos que estavam nos cofres. O roubo, que a Carta apresenta como o culminar de uma farra de saques de 10 dias pelas Forças de Defesa e Segurança, aconteceu com a ajuda de explosivos militares usados ​​para abrir buracos nos cofres dos bancos. Após o assalto, os perpetradores tentaram fugir para Pemba fazendo-se passar por civis deslocados, mas foram detidos e grande parte do dinheiro foi confiscado. O dinheiro está actualmente sob custódia militar e não está claro se o mesmo  será devolvido aos bancos.

Estes episódios vem salientar o receio expresso por civis deslocados no distrito de Ancuabe na semana passada, que disseram estar sujeitos a intimidação frequente por parte das forças de segurança. As tropas do governo “não respeitam ninguém, inclusive as esposas das pessoas”, disse um deslocado a jornalistas. Por seu turno, alegaram várias fontes, as tropas recorrem a acusações de que civis deslocados estão na verdade a colaborar com os insurgentes para extorquir dinheiro e bens dos deslocados.

Foco do Incidente: Conflitos de Terra

Na semana passada, uma comissão parlamentar que investigava as condições de reassentamento em Cabo Delgado relatou que o deslocamento em massa na província levou a disputas endêmicas de terra em comunidades que hospedam os deslocados. A comissão minimizou a situação, com um membro garantindo à imprensa que as autoridades locais estão a lidar habilmente com as disputas. Observadores independentes, no entanto, vêem o relatório da comissão como um reconhecimento parcial de um problema fundamental: centenas de milhares de pessoas deslocadas em Cabo Delgado não sabem onde irão viver a longo prazo.

A comissão está seguramente correcta ao afirmar que tem havido uma tensão generalizada entre os deslocados e as comunidades hospedeiras, inclusive por conta da terra. Em um exemplo recente, deslocados no distrito de Montepuez relataram ter sido forçados a pagar aos nativos, que alegavam ser proprietários de terras, para permanecer no que deveria ser um centro de reassentamento sob gestão do governo. No entanto, quando a Organização Internacional das Nações Unidas para as Migrações entrevistou 231 famílias recentemente deslocadas de Palma para os distritos de Mueda e Montepuez, descobriu que 56% das famílias queriam permanecer em Mueda e Montepuez. Outros 33% não tinham certeza dos seus planos a longo prazo, enquanto apenas 8% disseram que queriam voltar para Palma. Certamente há algum viés de selecção na pesquisa - todos os entrevistados foram recentemente deslocados em um ataque especialmente traumático, e é difícil prever quando será possível o regresso dos civis à Palma. As experiências nos distritos de Quissanga e Macomia demonstraram que, em muitos casos, os civis deslocados estão dispostos a correr riscos substanciais para regressar às suas casas. Ainda assim, a pesquisa demonstra uma clara discrepância entre as expectativas das pessoas deslocadas sobre onde irão se alojar e a atitude das comunidades hospedeiras em relação à chegada permanente das populações deslocadas.

Uma explicação para a discrepância é a percepção entre os deslocados de que seu deslocamento é a razão do conflito. Numa entrevista ao longo da semana passada, o investigador Yussuf Adam, que trabalhou extensivamente em Cabo Delgado, descreveu uma crença que, segundo ele, está generalizada entre os deslocados na província. “Esta guerra”, disseram-lhe os deslocados, “serve para tirá-los de suas terras sem serem indemnizados”. Embora não haja elementos que comprovem que o conflito é um apoderamento privado ou estatal de terras, a má gestão da crise do deslocamento por parte do governo alimentou a crença na teoria. Por exemplo, os deslocados solicitaram aos funcionários do governo documentos que certifiquem a aldeia de origem, bem como as propriedades que possuem, na esperança de recuperar após o conflito. O governo se recusou a emitir qualquer documentação. De facto, o próprio governo - na pessoa do então secretário provincial de Cabo Delgado e agora chefe da Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte, Armindo Ngunga, disse esperar que a maioria dos deslocados nunca regressem a casa. Enquanto não houver um plano para ajudá-los a obter a respectiva documentação, a disputa pela terra nos arredores da zona de conflito continuará a ser um problema e a desconfiança em relação aos motivos do governo só aumentará entre as populações deslocadas.

Resposta do Governo

Disputas de terras entre locais e deslocados em Cabo Delgado só irão piorar devido a  escassez de alimentos na província, e é precisamente o que está a acontecer, de acordo com um relatório da Rede do Sistema de Alerta Antecipado contra Fome (FEWSNet). De acordo com a FEWSNet, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) só tem recursos suficientes para fornecer alimentos até o final de Julho de 2021. Depois disso, na ausência da injecção de novos fundos, a ajuda alimentar às pessoas nos arredores da zona de conflito terá de ser reduzida. Para agravar o problema, as chuvas irregulares e as pragas reduziram a produção de cereais, mesmo nas partes de Cabo Delgado não destruídas pelo conflito, limitando a capacidade local para resolver quaisquer déficits alimentares.

Há também muitos deslocados que não seriam alcançados nem mesmo um esforço do PMA totalmente financiado, de acordo com a Comissão Nacional de Direitos Humanos de Moçambique. Em conferência de imprensa, o presidente da comissão disse que ainda há pessoas deslocadas de suas casas que vivem no mato e ainda não foram contabilizadas entre as que fugiram da zona de conflito. Suas palavras são corroboradas por relatos contínuos de pessoas que fugiram de Palma após o ataque de 24 de Março, que chegaram a pé a Nangade há sensivelmente duas semanas.

O OIM estima que, dos civis deslocados devido aos ataques de Cabo Delgado e que estão disponíveis para serem contabilizados, quase 300.000 são crianças. Uma das inúmeras maneiras pelas quais o conflito prejudicou essas crianças é que cortou severamente as taxas de vacinação entre os jovens na província. De acordo com dados do Ministério da Saúde de Moçambique, a taxa de vacinação de crianças na província caiu de 100% em 2019 para apenas 59% em 2020. Com os cuidados e cadastros médicos sendo gravemente afectados pelo conflito, será muito difícil colmatar a lacuna nas vacinações subsequentes.

Também existem constantes preocupações, tanto interna quanto internacionalmente, sobre as restrições à liberdade de movimento de civis que simplesmente tentam escapar da violência. Internamente, populares no posto administrativo de Chai, no distrito de Macomia, se viram entre a espada e a parede depois que o local que se abrigavam como refúgio seguro se tornou em local de ofensiva militar do governo. Os civis em causa estavam escondidos no mato,  fora da vila, na tentativa de se proteger dos insurgentes sem ter que abrir mão de suas casas ou plantações. Na semana passada, as forças governamentais ordenaram aos civis para que voltassem à vila, alertando que a área ao redor de Chai seria um palco para um ataque às posições dos insurgentes perto do rio Messalo, ao norte. Os civis não tiveram escolha a não ser consentir, mas estes temem que Chai enfrente um destino semelhante ao de Namacande e outras vilas: um curto período de protecção pelas forças governamentais, seguido por um longo período após a retirada das forças governamentais, no qual os residentes são vulneráveis ​​a represálias por parte dos insurgentes.

No âmbito internacional, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) continua a criticar a Tanzânia pelo tratamento dado aos moçambicanos que fogem de Palma. Um relatório da ACNUR estimou que a Tanzânia deportou em Maio cerca de 3.800 refugiados moçambicanos para o distrito de Mueda. O número real dos deportados é provavelmente maior. Fontes em Dar es Salaam sugerem que os tanzanianos também estão a deportar moçambicanos mais a oeste para a província de Niassa. De acordo com o relatório do ACNUR, uma cidadã moçambicana foi forçada a dar à luz sem cuidados médicos enquanto era deportada, uma indicação das condições desesperadas enfrentadas pelos refugiados moçambicanos naquele país.

Uma cerimónia de graduação para cadetes militares tanzanianos que decorreu recentemente na região de Pwani ofereceu algumas perspectivas sobre a abordagem da Tanzânia em relação aos moçambicanos e ao conflito de Cabo Delgado. Falando aos cadetes graduados, o general Paul Simuli lembrou aos jovens soldados que “há terrorismo na Tanzânia” e que é necessária vigilância constante para derrotá-lo. Os terroristas, disse ele, estão inseridos em nossas comunidades. “Nós comemos com eles, brincamos com eles”, disse ele, e lembrou às pessoas que isso constituiria uma falha de segurança “se você ver um estranho em sua comunidade e não verificar a identificação”. “Se abandonarmos essa prática”, continuou ele, “estaremos apenas dando boas-vindas à pobreza ... qualquer país que entrou em conflito, geralmente a economia não permanece estável.” O discurso de Simuli sugere que os esforços do governo da Tanzânia para limitar as ligações, tanto militares como humanitárias, entre a Tanzânia e o conflito em Cabo Delgado estão enraizados na crença de que a ameaça de conflito que se espalha ao norte da fronteira é muito real.

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